terça-feira, 17 de julho de 2012

Crônica Comentada: Bons dias, de Machado de Assis

A obra de Machado de Assis não deixa dúvidas: a literatura sai de sua pena (é, pena de caneta, coisa que naquele tempo era instrumento do escritor) com a maior facilidade. Prova disso são suas crônicas diárias para os jornais. Todas que se lê provocam um riso no canto do lábio, já que a ironia, arma que Machado usou magistralmente, permanece viva nelas apesar da passagem do tempo, os mais de cem anos em que foram escritas.
A crônica que selecionamos para hoje, além de ser deliciosa, tem outro atributo: revela o processo de criação do narrador-cronista. Ao andar de bonde pela cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, ou bond, como se dizia na época, assim em inglês, Machado “desliga” do tempo cronológico e, deixando a mente vagar, mergulha nas pequenas ocorrências do cotidiano. Essas ocorrências, em geral tão pequenas e costumeiras que ninguém nelas repara, nesse estado de “desligamento temporal e espacial” provocam um ruminar, isto é, um estado de meditação ou reflexão que deslocam o pensamento do autor de seu tempo vivido para o tempo da criação.
Vamos “pegar o bonde” do Machado e buscar inspiração para escrever crônicas nesse mergulho no cotidiano?

BONS DIAS!
(publicada em 21 de janeiro de 1889)

Vi não me lembra onde...
É meu costume; quando não tenho que fazer em casa, ir por esse mundo de Cristo, se assim se pode chamar à cidade de São Sebastião, matar o tempo.
Não conheço melhor ofício, mormente se a gente se mete por bairros excêntricos; um homem, uma tabuleta, qualquer coisa basta a entreter o espírito, e a gente volta para casa "lesta e aguda", como se dizia em não sei que comédia antiga.
Naturalmente, cansadas as pernas, meto-me no primeiro Bond, que pode trazer-me à casa ou à Rua do Ouvidor, que é onde todos moramos. Se o Bond é dos que têm de ir por vias estreitas e atravancadas, torna-se um, verdadeiro obséquio do céu. De quando em quando, pára diante de uma carroça que despeja ou recolhe fardos. O cocheiro trava o carro, ata as rédeas, desce e acende um cigarro: o condutor desce também e vai dar uma vista de olhos ao obstáculo. Eu, e todos os veneráveis camelos da Arábia, vulgo passageiros, se estamos dizendo alguma coisa, calamo-nos para ruminar e esperar.
Ninguém sabe o que sou quando rumino. Posso dizer, sem medo de errar, que rumino muito melhor do que falo. A palestra é uma espécie de peneira, por onde a idéia sai com dificuldade, creio que mais fina, mas muito menos sincera. Ruminando, a idéia fica integra e livre. Sou mais profundo ruminando; e mais elevado também.
Ainda anteontem, aproveitando uma meia hora de Bond parado, lembrou-me não sei como o incêndio do club dos Tenentes do Diabo. Ruminei os episódios todos, entre eles os atos de generosidade tia parte das sociedades congêneres; e fiquei triste de não estar naquela primeira juventude, em que a alma se mostra capaz de sacrifícios e de bravura. Todas essas dedicações dão prova de uma solidariedade rara, grata ao coração.
Dois episódios, porém, me deram a medida do que valho, quando rumino. Toda a gente os leu separadamente; o leitor e eu fomos os únicos que os comparamos. Refiro-me, primeiramente, à ação daqueles sócios de outro club, que correram à casa que ardia, e, acudindo-lhes à lembrança os estandartes, bradaram que era preciso salvá-los. "Salvemos os estandartes!", e tê-lo-iam feito, a troco da vida de alguns, se não fossem impedidos a tempo. Era loucura, mas loucura sublime. Os estandartes são para eles o símbolo da associação, representam a honra comum, as glórias comuns, o espírito que os liga e perpetua.
Esse foi o primeiro episódio. Ao pé dele temos o do empregado que dormia, na sala. Acordou este, cercado de fumo, que o ia sufocando e matando. Ergueu-se, compreendeu tudo, estava perdido, era preciso fugir. Pegou em si e no livro da escrituração e correu pela escada abaixo. Comparai esses dois atos, a salvação dos estandartes e a salvação do livro, e tereis uma imagem completa do homem. Vós mesmos que me ledes sois outros tantos exemplos de conclusão. Uns dirão que o empregado, salvando o livro, salvou o sólido; o resto é obra de sirgueiro. Outros replicarão que a contabilidade pode ser reconstituída, mas que o estandarte, símbolo da associação, é também a sua alma; velho e chamuscado, valeria muito mais que o que possa sair agora' novo, de uma loja. Compará-lo-ão à bandeira de uma nação, que os soldados perdem no combate, ou trazem esfarrapada e gloriosa.
E todos vós tereis razão; sois as duas metades do homem formais o homem todo... Entretanto, isso que aí fica dito está longe da sublimidade com que o ruminei. Oh! Se todos ficássemos calados! Que imensidade de belas e grandes idéias! Que saraus excelentes! Que sessões de Câmara! Que magníficas viagens de bond!
Mas por onde é que eu tinha principiado? Ah! Uma coisa que vi, sem saber onde... Não me lembro se foi andando de bond; creio que não. Fosse onde fosse, no centro da cidade ou fora dela. Vi, à porta de algumas casas, esqueletos de gente postos em atitudes joviais. Sabem que o meu único defeito é ser piegas; venero os esqueletos, já porque o são, já porque o não sou. Não sei se me explico.
Tiro o chapéu às caveiras; gosto da respeitosa liberdade com que Hamlet fala à do bobo Yorick. Esqueletos de mostrador, fazendo guifonas, sejam eles de verdade ou não, é coisa que me aflige. Há tanta coisa gaiata por esse mundo, que não vale a pena ir ao outro arrancar de lá os que dormem. Não desconheço que esta minha pieguice ia melhor em verso, com toada de recitativo ao piano: Mas é que eu não faço versos; isto não é verso: Venha o esqueleto, mais tristonho e grave Bem como a ave, que fugiu do além...
Sim, ponhamos o esqueleto nos mostradores, mas sério, tão sério como se fosse o próprio esqueleto do nosso avô, por exemplo... Obrigá-lo a uma polca, habanera, lundu ou cracoviana... Cracoviana? Sim, leitora amiga, é uma dança muito antiga, que o nosso amigo João, cá de casa, executa maravilhosamente, no intervalo dos seus trabalhos. Quando acaba, diz-nos sempre, parodiando um trecho de Shakespeare:
"Há entre a vossa e a minha idade, muitas mais coisas do que sonha a vossa vã filosofia."
Boas noites.
Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro http://www.bibvirt.futuro.usp.br
Permitido uso para fins educacionais.

Indicação de Leitura


Os nomes de Cortázar, Garcia Marquez, Mia Couto, T.S Elliot, Liev Tolstoi e Saramago nos fazem pensar em obras sofisticadas que requerem maturidade de seus leitores. Mas esses grandes mestres não escreveram apenas para gente grande. Também deixaram obras-primas que figuram nos amontoados coloridos das seções infantis das livrarias.


Camponês ambicioso
Tolstoi escreveu Guerra e Paz e Anna Karenina, clássicos da literatura do século 19, na escola para crianças desfavorecidas que ele fundou em sua enorme propriedade herdada dos pais. Muitos dos livros usados em sala de aula eram escritos pelo próprio escritor. Foi nesse período que escreveu o conto infantil De quanta terra precisa um homem? , lançado no Brasil pela Cia. das Letrinhas. Conta história de Pahkón, um camponês ambicioso que nunca estava satisfeito com o tamanho de suas terras. De humilde agricultor endividado, o personagem vai gradativamente sucumbindo à sua ganância. Se antes tinha o objetivo de acomodar melhor sua família e reduzir as despesas com as multas pagas a uma latifundiária vizinha, pois seus animais invadiam a plantação daquela proprietária, ele acaba, por fim, tornando-se a cobiça em si, com um desejo de acumulação abstrato, alienado de suas necessidades. O estilo russo, combinado a uma parábola alegórica da mentalidade camponesa do século 19, surpreendentemente configura um livro infantil de primeira. A ambientação realista do ilustrador Cárcamo transporta o pequeno leitor para um tempo e um lugar diferente daquele a que está acostumado ser levado.
A flor de Saramago
A Maior Flor do Mundo
(Cia. das Letrinhas) é único livro infantil publicado por José Saramago. O conto traz a história de um menino-herói que, ao se deparar com uma flor murcha nos arredores de sua aldeia, contorna o mundo diversas vezes para lhe trazer um pouquinho de água do Nilo. A flor então vai crescendo, crescendo muito, mais do que qualquer outra flor. A história não termina; ganha mote para ser recontada por outra pessoa. Talvez pelas crianças, aquelas que melhor a entenderam. A Comunidade Virtual disponibiliza um link para uma animação baseada nesta história. Veja na seção Link.
O pequeno Machado
Conto de Escola
foi escrito para crianças? Isso é discutível. Mas é fato que a edição da obra de Machado de Assis pela Cosac Naify (vale dar uma olhada nos outros livros da coleção Dedinho de Prosa, da mesma editora) ilustrada por Nelson Cruz conseguiu adequá-la a um público infanto-juvenil sem negar a malícia característica dos textos daquele autor. O conto, que segundo Lúcia Miguel-Pereira, estudiosa do escritor carioca, tem explícito fundo autobiográfico, narra o primeiro contato do pequeno Machado com uma transação mercantil e a corrupção de um colega delator. Agudo e ardiloso, Conto de Escola é daqueles livros que não subestimam seus pequenos leitores, além de ser, sem dúvida, uma ótima opção para aqueles que querem introduzir os alunos na obra desse grande autor.
O urso dos encanamentos
Livros de realismo fantástico para crianças existem aos montes, mas poucos com a sensibilidade de O Discurso do Urso (Record). Escrito por Julio Cortázar, trata-se de uma narração em primeira pessoa da vida de um urso que vive na tubulação de um prédio. As belíssimas ilustrações do espanhol Emilio Urberuaga, em cores predominantemente primárias, dão ainda mais vida ao amável ursinho vermelho, viajante discreto e participante ativo da vida de todos os moradores.
Gatos bilíngues
A fantástica coleção de poemas sobre gatos, que T.S.Elliot escreveu para seus amigos em forma de cartas na década de 30, ganhou em 1992 uma tradução admirável feita por Ivo Barroso para o português (trabalho que valeu um prêmio Jabuti ao tradutor). A edição de Os gatos (Cia. das Letrinhas) é bilíngue, português e inglês. E vale a pena ler assim mesmo e se deliciar com a musicalidade e o ritmo dos poemas nas duas línguas. O vocabulário das divertidas historinhas pede, por vezes, um leitor um pouco mais preparado (na faixa de 10 anos); mas como escreve o crítico Antonio Candido, poesia é oscilação constante entre som e sentido, de modo que só o exercício de ouvir o que está escrito e perceber a construção rítmica já transpõe para plano da experiência alguma significação dos poemas.
Um Garcia Marquez para adultos ou crianças?
Depois de ler Maria dos Prazeres (Record), de Gabriel Garcia Marquez, é difícil não desconfiar que o livro estivesse na estante errada, no caso a dos livros infantis. O questionamento é inevitável: se o livro não está na estante dos adultos, o que faz na estante infantil? A personagem principal é uma prostituta velhinha que está esperando e preparando a própria morte desde que teve um sonho que julgou premonitório. Embora o tema não seja dos mais leves, e problemáticas políticas e sociais estejam explicitamente abordadas, o tratamento dado pelo autor envolve a situação numa delicadeza que confronta os valores morais assentados nos leitores. Choque por si só muito interessante.
Medo do escuro
“Não sei se alguém pode fazer livros ‘para’ crianças. Na verdade, ninguém se apresenta como fazedor de livros ‘para’ adultos. O que me encanta no acto da escrita é surpreender tanto a escrita como a língua em estado de infância”. É assim que Mia Couto inicia o prefácio de O Gato e o Escuro (Cia. das Letrinhas), seu único livro infantil. A obra narra a história de um gato que, cruzando a linha do pôr-do-sol, encontra o escuro. O que a princípio lhe causa muito medo, vai, aos poucos, sendo entendido como parte dele e, como tal, com potencial infinito de ser qualquer coisa que imaginar. Entender o escuro como parte de si gera no leitor um enfrentamento do próprio medo e permite um aprofundamento no modo de lidar com aquilo que cegamente (eis o maior problema do escuro) teme.

Autora: Bianca Alves Borgianni
Publicado em: 21/07/2010

sábado, 14 de julho de 2012

Poesia de Marcos Mairton

 


O SUJO E O MAL LAVADO
Marcos Mairton

Que a política está cheia
De gente bem desonesta,
Ninguém duvida ou contesta,
Afirmar ninguém receia.
Mas o que mais me chateia:
É corrupto safado
Se dizendo revoltado
Por haver outros roubando.
É COMO O SUJO FALANDO
QUE O OUTRO ESTÁ MAL LAVADO.


Olhando a televisão,
Volta e meia a gente assiste
Um fazer, com o dedo em riste,
Ao outro a acusação
De fraude e corrupção.
Mas, depois é revelado
Que é igual ao acusado,
Quem estava acusando,
TAL QUAL UM SUJO FALANDO
QUE O OUTRO ESTÁ MAL LAVADO.


Há também outras figuras
Que não estão na política,
E chegam fazendo crítica,
Mas fecham com prefeituras
Licitações obscuras
Onde tudo é combinado.
Gente do empresariado
Dessa maneira atuando,
É TAMBÉM SUJO FALANDO
QUE O OUTRO ESTÁ MAL LAVADO.


Sonegador lança mão
De todo tipo de embuste,
Para escapar do ajuste,
Das contas com o Leão.
Depois diz: “Todo ladrão
Tinha que ser enforcado”.
Faz cara de indignado,
Mas prossegue sonegando,
IGUAL AO SUJO FALANDO
QUE O OUTRO ESTÁ MAL LAVADO.


O pior de suportar
É quando um juiz se vende
E a sua balança pende
Para quem melhor pagar.
Que moral tem pra julgar
Um juiz que foi comprado?
Tinha que ser condenado,
Ao invés de estar julgando.
É SÓ UM SUJO FALANDO
QUE O OUTRO ESTÁ MAL LAVADO.


Tem ainda um pessoal
Que diz que é gente de bem,
Mas, se uma chance tem,
Se enfia no lamaçal.
Paladino da moral,
Logo que se vê flagrado,
Alega que foi forçado
A participar do bando.
É MAIS UM SUJO FALANDO
QUE O OUTRO ESTÁ MAL LAVADO.


Quase esqueço de falar
De alguns bispos e pastores
Que aos fiéis e seguidores
Têm prazer em enganar.
Mas, não deixam de apontar
O dedo pro outro lado
Dizendo: “Esse descarado,
dos fiéis está roubando”.
É MUITO SUJO FALANDO
QUE O OUTRO ESTÁ MAL LAVADO.


Então, para terminar,
Eu deixo uma sugestão:
Quem tiver a intenção
De a outros acusar,
É mister verificar
O que tem feito de errado.
Pra ficar assegurado,
Que não está se portando
COMO UM SUJO FALANDO
QUE O OUTRO ESTÁ MAL LAVADO.